QUARTA-FEIRA - 09/09/20
Texto Bíblico –
Sl 39.12
Ouve,
Senhor, a minha oração, e inclina os teus ouvidos ao meu clamor; não te cales
perante as minhas lágrimas, porque sou um estrangeiro e peregrino para contigo,
como todos os meus pais.
POEMA
O RIO - JOÃO CABRAL DE MELO NETO
Da lagoa da Estaca a Apolinário
Sempre
pensara em ir
caminho
do mar.
Para bichos
e rios
Nascer
já é caminhar.
Eu não
sei o que os rios
têm de
homem do mar;
sei
que se sente o mesmo
e
exigente chamar.
Eu já
nasci descendo
a serra
que se diz do Jacarará,
entre
caraibeiras
de que
só sei por ouvir contar
(pois,
também como gente,
não
consigo me lembrar
dessas
primeiras léguas
de meu
caminhar).
De Apolinário a Poço Fundo
Para o
mar vou descendo
por
essa estrada da ribeira.
A
terra vou deixando
de
minha infância primeira.
Vou
deixando uma terra
reduzida
à sua areia,
terra
onde as coisas vivem
a
natureza da pedra.
À mão
direita os ermos
do
Brejo da Madre de Deus,
Taquaritinga
à esquerda, onde o ermo é sempre o mesmo.
Brejo
ou Taquaritinga,
mão
direita ou mão esquerda,
vou
entre coisas poucas
e
secas além de sua pedra.
Deixando
vou as terras
de minha
primeira infância.
Deixando
para trás
os
nomes que vão mudando.
Terras
que eu abandono
porque
é de rio estar passando.
Vou
com passo de rio,
que é
de barco navegando.
Deixando
para trás
as
fazendas que vão ficando.
Vendo-as,
enquanto vou,
parece
que estão desfilando.
Vou
andando lado a lado
de
gente que vai retirando;
vou
levando comigo
os
rios que vou encontrando.
LITERATURA - MIA COUTO - TRECHO DO LIVRO "ANTES DE NASCER O MUNDO"
Trecho intitulado - Eu, Mwanito, o afinador de silêncios
A
família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um
território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros
para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para
estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou:
tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem,
silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é
música em estado de gravidez.
Quando
me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado.
Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que
se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.
—
Venha, meu filho, venha ajudar-me a ficar calado.
Ao fim
do dia, o velho se recostava na cadeira da varanda. E era assim todas as
noites: me sentava a seus pés, olhando as estrelas no alto do escuro. Meu pai
fechava os olhos, a cabeça meneando para cá e para lá, como se um compasso
guiasse aquele sossego. Depois, ele inspirava fundo e dizia:
— Este
é o silêncio mais bonito que escutei até hoje. Lhe agradeço, Mwanito.
Ficar
devidamente calado requer anos de prática. Em mim, era um dom natural, herança
de algum antepassado. Talvez fosse legado de minha mãe, Dona
Dordalma, quem podia ter a certeza? De tão calada, ela deixara de existir
e nem se notara que já não vivia entre nós, os vigentes viventes.
— Você
sabe, filho: há a calmaria dos cemitérios. Mas o sossego desta varanda é
diferente.
Meu
pai. A voz dele era tão discreta que parecia apenas uma outra variedade de
silêncio. Tossicava e a tosse rouca dele, essa, era uma oculta fala, sem palavras
nem gramática.
Ao
longe, se entrevia, na janela da casa anexa, uma bruxuleante lamparina. Por
certo, meu irmão nos espreitava. Uma culpa me raspava o peito: eu era o
escolhido, o único a partilhar proximidades com o nosso eterno progenitor.
— Não
chamamos o Ntunzi?
—
Deixe o seu irmão. É consigo que mais gosto de ficar sozinho.
— Mas
estou quase a ter sono, pai.
—
Fique só mais um pouco. É que são raivas, tantas raivas acumuladas. Eu preciso
afogar essas raivas e não tenho peito para tanto.
— Que
raivas são essas, meu pai?
—
Durante muitos anos alimentei feras pensando que eram animais de estimação.
Queixava-me
eu do sono, mas era ele quem adormecia. Deixava-o cabeceando na cadeira e
regressava para o quarto onde Ntunzi, desperto, me esperava. O meu irmão me
olhava com mistura de inveja e comiseração:
—
Outra vez essa treta do silêncio?
— Não
diga isso, Ntunzi.
— Esse
velho enlouqueceu. E o pior é que o gajo não gosta de mim.
—
Gosta.
— Por
que nunca me chama a mim?
— Ele
diz que sou um afinador de silêncios.
— E
você acredita? Não vê que é uma grande mentira?
— Não
sei, mano, que hei-de fazer se ele gosta que eu fique ali, todo caladito?
— Você
não percebe que isso é tudo conversa? A verdade é que você lhe traz lembranças
da nossa falecida mãe.
Mil
vezes Ntunzi me fez recordar o motivo por que meu pai me elegera como
predilecto. A razão desse favoritismo sucedera num único instante: no funeral
da nossa mãe, Silvestre não sabia estrear a viuvez e se afastou para um recanto
para se derramar em pranto. Foi então que me acerquei de meu pai e ele se
ajoelhou para enfrentar a pequenez dos meus três anos. Ergui os braços e, em
vez de lhe limpar o rosto, coloquei as minhas pequenas mãos sobre os seus
ouvidos. Como se quisesse convertê-lo em ilha e o alonjasse de tudo que tivesse
voz. Silvestre fechou os olhos nesse recinto sem eco: e viu que Dordalma não
tinha morrido. O braço, cego, estendeu-se na penumbra:
—
Alminha!
E
nunca mais ele proferiu o nome dela. Nem evocou lembrança do tempo em que tinha
sido marido. Queria tudo isso calado, sepultado em esquecimento.
— E
você me ajude, meu filho.
Para
Silvestre Vitalício, a minha vocação estava definida: tomar conta dessa
insanável ausência, pastorear demónios que lhe abocanhavam o sono. Certa vez,
enquanto partilhávamos sossegos, arrisquei:
—
Ntunzi diz que lhe faço lembrar a mãe. É verdade, pai?
— É o
contrário, você me afasta das lembranças. Esse Ntunzi é que me traz espinhos do
antigamente.
—
Sabe, pai? Ontem sonhei com a mãe.
— Como
pode sonhar com alguém que nunca conheceu?
— Eu
conheci, só não me lembro.
— É a
mesma coisa.
— Mas
recordo a voz dela.
— Qual
voz dela? Dordalma quase nunca falava.
—
Recordo um sossego que parece, sei lá, parece água. Às vezes penso que me
lembro da casa, o grande sossego da casa…
— E
Ntunzi?
—
Ntunzi o quê, pai?
— Ele
insiste que se recorda da mãe?
— Não
há dia em que ele não se recorde dela.
Meu
pai nada respondeu. Ruminou um novelo de resmungos e, depois, com voz rouca de
quem foi ao fundo da alma, afirmou:
— Vou
dizer uma coisa, nunca mais vou repetir: vocês não podem lembrar nem sonhar
nada, meus filhos.
— Mas
eu sonho, pai. E Ntunzi se lembra de tanta coisa.
— É
tudo mentira. O que vocês sonham fui eu que criei nas vossas cabeças.
Entendem?
—
Entendo, pai.
— E o
que vocês lembram sou eu que acendo nas vossas cabeças.
O
sonho é uma conversa com os mortos, uma viagem ao país das almas. Mas já não
havia nem falecidos nem território das almas. O mundo tinha terminado e o seu
final era um desfecho absoluto: a morte sem mortos. O país dos defuntos estava
anulado, o reino dos deuses cancelado. Foi assim que, de uma assentada, meu pai
falou. Até hoje essa explanação de Silvestre Vitalício me parece lúgubre e
confusa. Porém, naquele momento, ele foi peremptório:
— É
por isso que vocês não podem nem sonhar nem lembrar. Porque eu próprio não
sonho, nem lembro.
— Mas,
pai, o senhor não tem memória da nossa mãe?
— Nem
dela, nem da casa, nem de nada. Já não me lembro de nada.
E ele
se ergueu, rangente, para esquentar o café. Os passos eram de embondeiro que
vai arrancando as próprias raízes. Olhou o fogo, fez de conta que se mirava num
espelho, fechou os olhos e aspirou os perfumosos vapores da cafeteira. Ainda de
olhos fechados, sussurrou:
— Vou
dizer um pecado: deixei de rezar quando você nasceu.
— Não
diga isso, meu pai.
—
Estou-lhe a dizer.
Uns
têm filhos para ficarem mais perto de Deus. Ele se convertera em Deus desde que
era meu pai. Assim falou Silvestre Vitalício. E prosseguiu: os falsos tristes,
os maus solitários acreditam que os lamentos sobem às alturas.
— Mas
Deus está surdo — disse.
Fez
uma pausa para erguer a chávena e saborear o café e, depois, rematou:
—
Mesmo que não estivesse surdo: que palavra há para falar a Deus?
Em
Jesusalém, não havia igreja de pedra ou cruz. Era no meu silêncio que meu pai
fazia catedral. Era ali que ele aguardava o regresso de Deus.
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