quarta-feira, 23 de setembro de 2020

QUARTA - FEIRA (DIA 23/09/20)

 TEXTO BÍBLICO - João 8. 3 - 11

Os escribas e fariseus trouxeram à sua presença uma mulher surpreendida em adultério e, fazendo-a ficar de pé no meio de todos, disseram a Jesus: Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante adultério. E na lei nos mandou Moisés que tais mulheres sejam apedrejadas; tu, pois, que dizes? Isto diziam eles tentando-o, para terem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia na terra com o dedo. Como insistissem na pergunta, Jesus se levantou e lhes disse: Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra. E, tornando a inclinar-se, continuou a escrever no chão. Mas, ouvindo eles esta resposta e acusados pela própria consciência, foram-se retirando um por um, a começar pelos mais velhos até aos últimos, ficando só Jesus e a mulher no meio onde estava. Erguendo-se Jesus e não vendo a ninguém mais além da mulher, perguntou-lhe: Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou? Respondeu ela: Ninguém, Senhor! Então, lhe disse Jesus: Nem eu tampouco te condeno; vai e não peques mais.

POEMA - JOSÉ - Carlos Drummond de Andrade. In: Coletâneas Poesias 

José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?


LITERATURA - Conto "Guerra dos Palhaços" - Mia Couto. In: livro Estórias Abensonhadas.

Guerra dos Palhaços

Um vez dois palhaços se puseram a discutir. As pessoas paravam, divertidas, a vê-los.
— É o quê?, perguntavam
— Ora, são apenas dois palhaços discutindo.

Quem os podia levar a sério? Ridículos, os dois cómicos ripostavam. Os argumentos eram simples disparates, o tema era uma ninharice. E passou-se um inteiro dia.

Na manhã seguinte, os dois permaneciam, excessivos e excedendo-se. Parecia que, entre eles, se azedava a mandioca. Na via pública, no entanto, os presentes se alegravam com a mascarada. Os bobos foram agravando os insultos, em
afiadas e afinadas maldades. Acreditando tratar-se de um espetáculo, os transeuntes deixavam moedinhas no passeio.

No terceiro dia, porém, os palhaços chegavam a vias de facto. As chapadas se desajeitavam, os pontapés zumbiam mais no ar que nos corpos. A miudagem se divertia, imitando os golpes dos saltimbancos. E riam-se dos disparatados, os corpos em si mesmos se tropeçando. E os meninos queriam retribuir a gostosa bondade dos palhaços.
— Pai, me dê as moedinhas para eu deitar no passeio.

No quarto dia, os golpes e murros se agravaram. Por baixo das pinturas, o rosto dos bobos começava a sangrar. Alguns meninos se assustaram. Aquilo era verdadeiro sangue?
— Não é a sério, não se aflijam, sossegaram os pais.

Em falha de trajetória houve quem apanhasse um tabefe sem direção. Mas era coisa ligeira, só servindo para aumentar os risos. Mais e mais gente se ia juntando.
— O que se passa?
Nada. Um ligeiro desajuste de contas. Nem vale a pena separá-los. Eles se cansarão, não passa o caso de uma palhaçada. No quinto dia, contudo, um dos palhaços se muniu de um pau. E avançando sobre o adversário lhe desfechou um golpe que lhe arrancou a cabeleira postiça.

O outro, furioso, se apetrechou de simétrica matraca e respondeu na mesma desmedida. Os varapaus assobiaram no ar, em tonturas e volteios. Um dos espectadores, inadvertidamente, foi atingido. O homem caiu, esparramorto. Levantou-se certa confusão. Os ânimos se dividiram. Aos poucos, dois campos de batalha se foram criando. Vários grupos cruzavam pancadarias. Mais uns tantos ficaram caídos.

Entrava-se na segunda semana e os bairros em redor ouviram dizer que uma tonta zaragata se instalara em redor de dois palhaços. E que a coisa escaramuçara toda a praça. E a vizinhança achou graça. Alguns foram visitar a praça para confirmar os ditos. Voltavam com contraditórias e acaloradas versões. A vizinhança se foi dividindo, em opostas opiniões. Em alguns bairros se iniciaram conflitos.

No vigésimo dia se começaram a escutar tiros. Ninguém sabia exatamente de onde provinham. Podia ser de qualquer ponto da cidade. Aterrorizados, os habitantes se armaram. Qualquer movimento lhes parecia suspeito. Os disparos
se generalizaram. Corpos de gente morta começaram a se acumular nas ruas. O terror dominava toda a cidade. Em breve, começaram os massacres.

No princípio do mês, todos os habitantes da cidade haviam morrido. Todos exceto os dois palhaços. Nessa manhã, os cómicos se sentaram cada um em seu canto e se livraram das vestes ridículas. Olharam-se, cansados. Depois, se levantaram e se abraçaram, rindo-se a bandeiras despregadas. De braço dado, recolheram as moedas nas bermas do passeio. Juntos atravessaram a cidade destruída, cuidando não pisar os cadáveres. E foram à busca de uma outra cidade.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

 QUARTA - FEIRA - 16 /09

Texto BíblicoJr 15. 16: Assim que eu achei as tuas palavras, logo as comi, e a tua palavra foi para mim o gozo e alegria do meu coração

POEMA:

Salmos 19. 7 – 10

A lei do Senhor é perfeita, e refrigera a alma; o testemunho do Senhor é fiel, e dá sabedoria aos símplices.

Os preceitos do Senhor são retos e alegram o coração; o mandamento do Senhor é puro, e ilumina os olhos.

O temor do Senhor é limpo, e permanece eternamente; os juízos do Senhor são verdadeiros e justos juntamente.

Mais desejáveis são do que o ouro, sim, do que muito ouro fino; e mais doces do que o mel e o licor dos favos.

LITERATURA 

LEONARDO BOFF :

Os salmos constituem uma  das formas mais altas de oração que a humanidade produziu. Milhões e milhões de pessoas, judeus, cristãos e religiosos de todas as tradições, dia a dia, recitam e cantam salmos, especialmente os religiosos e religiosas e os padres no assim chamado “ofício das horas”diário.

Não sabemos exatamente quem seus autores, pois eles recolhem as orações que circulavam no  meio do povo. Seguramente muitos são de Davi (século X a.C). É considerado, por excelência, o protótipo do salmista. Foi pastor, guerreiro, profeta, poeta, músico, rei e profundamente religioso. Conquistou o Monte Sion dentro de Jerusalém e lá, ao redor da Arca da Aliança, organizou o culto e introduziu os salmos.

Quando se diz “salmo de Davi” na maioria das vezes significa: “salmo feito no estilo de Davi”. Os salmos surgiram no arco de quase mil anos, nos lugares de culto e recitados pelo povo até serem recopilados na época dos Macabeus no século II.a.C. O saltério é um microcosmo histórico, semelhante a uma catedral da Idade Média, construída durante séculos, por gerações e gerações, por milhares de mãos e incorporando as mudanças de estilo arquitetônico das várias épocas. Assim há salmos que revelam diferentes concepções de Deus, próprias de certa época, como aqueles, estranhas para nós, que expressam o desejo de vingança e o juízo implacável de Deus.

Os salmos testemunham a profunda convicção de que Deus, não obstante habitar numa luz inacessível, está em nosso meio, morando como que numa tenda (shekinah). Podemos chegar a Ele, em súplicas, lamentações, louvores e ações de graças. Ele está sempre pronto para escutar.

O lugar denso de sua presença é o Templo onde se cantam os salmos. Mas como Criador do céu e da terra, está igualmente em todos os lugares, embora nenhum possa contê-lo.

Com razão, se orgulhavam os hebreus dizendo: “ninguém tem um Deus tão próximo como nós”! Próximo de cada um e no meio de seu povo. Os salmos revelam a consciência da proximidade divina e do amparo consolador. Por isso há neles intimidade pessoal sem cair no intimismo individualista. Há oração coletiva sem destituir a experiência pessoal. Uma dimensão reforça a outra, pois cada uma é verdadeira: não há pessoas sem o povo no qual estão inseridas e não há povo sem pessoas livres que o formam.

Ao ler (orar) os salmos, encontramos neles a nossa radiografia espiritual, pessoal e coletiva. Neles identificamos nossos estados de ânimo:  desespero e alegria, medo e confiança, luto e dança, vontade de vingança e  desejo de perdão, interioridade e fascinação pela grandeza do céu estrelado. Bem o expressou o reformador João Calvino (1509-1564) no prefácio de seu grandioso comentário aos salmos: “Costumo definir este livro como uma anatomia de todas as partes da alma, porque não há sentimento no ser humano que não esteja aí representado como num espelho. Diria que o Espírito Santo colocou ali, ao vivo, todas as dores, todas as tristezas, todos os temores, todas as dúvidas, todas as esperanças, todas as preocupações, todas as perplexidades até as emoções mais confusas que agitam habitualmente o espírito humano”.

Pelo fato de revelarem nossa autobiografia espiritual, os salmos representam a palavra do ser humano a  Deus e, ao mesmo tempo, a palavra de Deus ao ser humano. O saltério serviu sempre como  livro de consolação e fonte secreta de sentido, especialmente quando irrompe na humanidade o desamparo, a perseguição, a injustiça e a ameaça de morte. O filósofo francês Henri Bergson (1859-1941) deu este insuspeitado testemunho:”Das centenas de livros que li nenhum me trouxe tanta luz e conforto quanto estes poucos versos do salmo 23: O Senhor é meu pastor e nada me falta; ainda que ande por um vale tenebroso, não temo mal nenhum, porque Tu estás comigo”.

Um judeu, por exemplo, cercado de filhos, era empurrado, para as câmaras de gás em Auschwitz. Ele sabia que caminhava para o extermínio. Mesmo assim, ia recitando alto o salmo 23: “O Senhor é meu pastor…Ainda que eu ande pela sombra do  vale da morte, nenhum mal temerei, porque Tu estás comigo”. A morte não rompe a comunhão com Deus. É passagem, mesmo dolorosa, para o grande abraço infinito da paz eterna.

Por fim, os salmos são poesias religiosas e místicas da mais alta expressão. Como toda poesia, recriam a realidade com metáforas e imagens tiradas do imaginário. Este obedece a uma lógica própria, diferente daquela da racionalidade. Pelo imaginário, transfiguramos situações e fatos detectando neles sentidos ocultos e mensagens divinas. Por isso dizemos que não só habitamos prosaicamente o mundo, colhendo o sentido manifesto do desenrolar rotineiro dos acontecimentos. Habitamos também poeticamene o mundo, vendo o outro lado das coisas e um outro mundo dentro do mundo de beleza e de  encantamento.

Os salmos nos ensinam a habitar poeticamente a realidade. Então ela se transmuta num grande sacramento de Deus, cheia de sabedoria, de admoestações e de lições que tornam mais seguro nosso peregrinar rumo à Fonte. Como bem diz o salmista: “quando caminho entre perigos, tu me conservas a vida…e estás  até o fim a meu favor” (Salmo 138, 7-8).

(extraído do site do autor - https://leonardoboff.org/2014/02/03/os-salmos-a-anatomia-da-alma-humana/)

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

QUARTA-FEIRA - 09/09/20

Texto Bíblico – Sl 39.12 

Ouve, Senhor, a minha oração, e inclina os teus ouvidos ao meu clamor; não te cales perante as minhas lágrimas, porque sou um estrangeiro e peregrino para contigo, como todos os meus pais.

POEMA

O RIO - JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Da lagoa da Estaca a Apolinário

Sempre pensara em ir

caminho do mar.

Para bichos e rios

Nascer já é caminhar.

Eu não sei o que os rios

têm de homem do mar;

sei que se sente o mesmo

e exigente chamar.

Eu já nasci descendo

a serra que se diz do Jacarará,

entre caraibeiras

de que só sei por ouvir contar

(pois, também como gente,

não consigo me lembrar

dessas primeiras léguas

de meu caminhar).

 

De Apolinário a Poço Fundo

Para o mar vou descendo

por essa estrada da ribeira.

A terra vou deixando

de minha infância primeira.

Vou deixando uma terra

reduzida à sua areia,

terra onde as coisas vivem

a natureza da pedra.

À mão direita os ermos

do Brejo da Madre de Deus,

Taquaritinga à esquerda, onde o ermo é sempre o mesmo.

Brejo ou Taquaritinga,

mão direita ou mão esquerda,

vou entre coisas poucas

e secas além de sua pedra.

 

Deixando vou as terras

de minha primeira infância.

Deixando para trás

os nomes que vão mudando.

Terras que eu abandono

porque é de rio estar passando.

Vou com passo de rio,

que é de barco navegando.

Deixando para trás

as fazendas que vão ficando.

Vendo-as, enquanto vou,

parece que estão desfilando.

Vou andando lado a lado

de gente que vai retirando;

vou levando comigo

os rios que vou encontrando.

LITERATURA - MIA COUTO - TRECHO DO LIVRO "ANTES DE NASCER O MUNDO"

Trecho intitulado - Eu, Mwanito, o afinador de silêncios

A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.

Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.

— Venha, meu filho, venha ajudar-me a ficar calado.

Ao fim do dia, o velho se recostava na cadeira da varanda. E era assim todas as noites: me sentava a seus pés, olhando as estrelas no alto do escuro. Meu pai fechava os olhos, a cabeça meneando para cá e para lá, como se um compasso guiasse aquele sossego. Depois, ele inspirava fundo e dizia:

— Este é o silêncio mais bonito que escutei até hoje. Lhe agradeço, Mwanito.

Ficar devidamente calado requer anos de prática. Em mim, era um dom natural, herança de algum antepassado. Talvez fosse legado de minha mãe, Dona Dordalma, quem podia ter a certeza? De tão calada, ela deixara de existir e nem se notara que já não vivia entre nós, os vigentes viventes.

— Você sabe, filho: há a calmaria dos cemitérios. Mas o sossego desta varanda é diferente.

Meu pai. A voz dele era tão discreta que parecia apenas uma outra variedade de silêncio. Tossicava e a tosse rouca dele, essa, era uma oculta fala, sem palavras nem gramática.

Ao longe, se entrevia, na janela da casa anexa, uma bruxuleante lamparina. Por certo, meu irmão nos espreitava. Uma culpa me raspava o peito: eu era o escolhido, o único a partilhar proximidades com o nosso eterno progenitor.

— Não chamamos o Ntunzi?

— Deixe o seu irmão. É consigo que mais gosto de ficar sozinho.

— Mas estou quase a ter sono, pai.

— Fique só mais um pouco. É que são raivas, tantas raivas acumuladas. Eu preciso afogar essas raivas e não tenho peito para tanto.

— Que raivas são essas, meu pai?

— Durante muitos anos alimentei feras pensando que eram animais de estimação.

Queixava-me eu do sono, mas era ele quem adormecia. Deixava-o cabeceando na cadeira e regressava para o quarto onde Ntunzi, desperto, me esperava. O meu irmão me olhava com mistura de inveja e comiseração:

— Outra vez essa treta do silêncio?

— Não diga isso, Ntunzi.

— Esse velho enlouqueceu. E o pior é que o gajo não gosta de mim.

— Gosta.

— Por que nunca me chama a mim?

— Ele diz que sou um afinador de silêncios.

— E você acredita? Não vê que é uma grande mentira?

— Não sei, mano, que hei-de fazer se ele gosta que eu fique ali, todo caladito?

— Você não percebe que isso é tudo conversa? A verdade é que você lhe traz lembranças da nossa falecida mãe.

Mil vezes Ntunzi me fez recordar o motivo por que meu pai me elegera como predilecto. A razão desse favoritismo sucedera num único instante: no funeral da nossa mãe, Silvestre não sabia estrear a viuvez e se afastou para um recanto para se derramar em pranto. Foi então que me acerquei de meu pai e ele se ajoelhou para enfrentar a pequenez dos meus três anos. Ergui os braços e, em vez de lhe limpar o rosto, coloquei as minhas pequenas mãos sobre os seus ouvidos. Como se quisesse convertê-lo em ilha e o alonjasse de tudo que tivesse voz. Silvestre fechou os olhos nesse recinto sem eco: e viu que Dordalma não tinha morrido. O braço, cego, estendeu-se na penumbra:

— Alminha!

E nunca mais ele proferiu o nome dela. Nem evocou lembrança do tempo em que tinha sido marido. Queria tudo isso calado, sepultado em esquecimento.

— E você me ajude, meu filho.

Para Silvestre Vitalício, a minha vocação estava definida: tomar conta dessa insanável ausência, pastorear demónios que lhe abocanhavam o sono. Certa vez, enquanto partilhávamos sossegos, arrisquei:

— Ntunzi diz que lhe faço lembrar a mãe. É verdade, pai?

— É o contrário, você me afasta das lembranças. Esse Ntunzi é que me traz espinhos do antigamente.

— Sabe, pai? Ontem sonhei com a mãe.

— Como pode sonhar com alguém que nunca conheceu?

— Eu conheci, só não me lembro.

— É a mesma coisa.

— Mas recordo a voz dela.

— Qual voz dela? Dordalma quase nunca falava.

— Recordo um sossego que parece, sei lá, parece água. Às vezes penso que me lembro da casa, o grande sossego da casa…

— E Ntunzi?

— Ntunzi o quê, pai?

— Ele insiste que se recorda da mãe?

— Não há dia em que ele não se recorde dela.

Meu pai nada respondeu. Ruminou um novelo de resmungos e, depois, com voz rouca de quem foi ao fundo da alma, afirmou:

— Vou dizer uma coisa, nunca mais vou repetir: vocês não podem lembrar nem sonhar nada, meus filhos.

— Mas eu sonho, pai. E Ntunzi se lembra de tanta coisa.

— É tudo mentira. O que vocês sonham fui eu que criei nas vossas cabeças.
Entendem?

— Entendo, pai.

— E o que vocês lembram sou eu que acendo nas vossas cabeças.

O sonho é uma conversa com os mortos, uma viagem ao país das almas. Mas já não havia nem falecidos nem território das almas. O mundo tinha terminado e o seu final era um desfecho absoluto: a morte sem mortos. O país dos defuntos estava anulado, o reino dos deuses cancelado. Foi assim que, de uma assentada, meu pai falou. Até hoje essa explanação de Silvestre Vitalício me parece lúgubre e confusa. Porém, naquele momento, ele foi peremptório:

— É por isso que vocês não podem nem sonhar nem lembrar. Porque eu próprio não sonho, nem lembro.

— Mas, pai, o senhor não tem memória da nossa mãe?

— Nem dela, nem da casa, nem de nada. Já não me lembro de nada.

E ele se ergueu, rangente, para esquentar o café. Os passos eram de embondeiro que vai arrancando as próprias raízes. Olhou o fogo, fez de conta que se mirava num espelho, fechou os olhos e aspirou os perfumosos vapores da cafeteira. Ainda de olhos fechados, sussurrou:

— Vou dizer um pecado: deixei de rezar quando você nasceu.

— Não diga isso, meu pai.

— Estou-lhe a dizer.

Uns têm filhos para ficarem mais perto de Deus. Ele se convertera em Deus desde que era meu pai. Assim falou Silvestre Vitalício. E prosseguiu: os falsos tristes, os maus solitários acreditam que os lamentos sobem às alturas.

— Mas Deus está surdo — disse.

Fez uma pausa para erguer a chávena e saborear o café e, depois, rematou:

— Mesmo que não estivesse surdo: que palavra há para falar a Deus?

Em Jesusalém, não havia igreja de pedra ou cruz. Era no meu silêncio que meu pai fazia catedral. Era ali que ele aguardava o regresso de Deus.

 


terça-feira, 1 de setembro de 2020

QUARTA DIA 02/09/20

BIBLÍA

Eclesiastes 3. 5: "tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntar pedras"

Jó 3. 1 - 3: "Depois disto, passou Jó a falar e amaldiçoou o seu dia natalício. Disse Jó: Pereça o dia em que nasci"

Jó 42.5: "Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te veem"


MÚSICA - TAPECEIRO - STÊNIO MÁRCIUS

https://youtu.be/QeW0PIVhjek


Tapeceiro
Grande artista
Vai fazendo o seu trabalho
Incansável, paciente
No seu tear

Tapeceiro
Não se engana
Sabe o fim desde o começo
Trança voltas, mil desvios
Sem perder o fio

Minha vida é obra de tapeçaria
É tecida de cores alegres e vivas
Que fazem contraste no meio das cores
Nubladas e tristes

Se você olha do avesso
Nem imagina o desfecho
No fim das contas
Tudo se explica
Tudo se encaixa
Tudo coopera pro meu bem

Quando se vê pelo lado certo
Muda-se logo a expressão do rosto
Obra de arte pra honra e glória
Do Tapeceiro

Quando se vê pelo lado certo
Todas as cores da minha vida
Dignificam a Jesus Cristo
O Tapeceiro

POEMA - CORA CORALINA

Das pedras
Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.

Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.

Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida…
Quebrando pedras
e plantando flores

Entre pedras que me esmagavam
levantei a pedra rude
dos meus versos.
– Cora Coralina, em “Meu livro de cordel”.

Assim eu vejo a vida
A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.
– Cora Coralina, [O poema acima, inédito em livro], foi publicado pelo jornal “Folha de São Paulo” — caderno “Folha Ilustrada”, edição de 4/7/2001.

LITERATURA

TRECHO DE "MORTE E VIDA SEVERINA - JOÃO CABRAL DE MELO NETO

— Severino, retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e da vida; nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga é difícil defender, só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, Severina; mas se responder não pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu com sua presença viva. E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida; como a de há pouco, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida Severina.

QUARTA - FEIRA (DIA 23/09/20)

  TEXTO BÍBLICO - João 8. 3 - 11 Os escribas e fariseus trouxeram à sua presença uma mulher surpreendida em adultério e, fazendo-a ficar de ...